Gente boa também morre e mata no trânsito
Quando é um desconhecido ou uma família de pessoas distantes de nós, é só mais um acidente, uma notícia, uma estatística. Quando é alguém perto de nós, amigo, vizinho, parente, colega de trabalho, aí o mundo desaba! Aí é que a ficha cai! Aí é que a gente consegue começar a compreender aquele choro, aquele desespero, aquela tristeza que estamos acostumados a ver na cara dos anônimos. Quando tem criança envolvida no acidente de trânsito e vemos essas crianças machucadas, mutiladas ou mesmo mortas, aí faltam palavras para definir tanta dor! Alguns são capazes de chorar pelos que não conhecem, mas quando é com alguém próximo de nós, não tem explicação e nem palavra ou gesto que console. O fato é que gente boa também mata e morre no trânsito, independente de idade, sexo, classe social ou qualquer outra variável.
Meu Deus, mas ele, ela, era tão bom! Tão boa! Não faziam mal para ninguém e só ajudavam os outros! Porque foi “acontecer” isso com eles? Sentindo pela primeira vez a dor dilacerante que estamos acostumados a ver nos outros, mas que até então não compreendíamos, vamos provando a pior espécie de empatia: colocar-se no lugar do outro quando a tragédia é de verdade e também nos atinge em cheio.
Em acidentes de extrema violência como aqueles que restam como saldos de ultrapassagens mal calculadas, de colisões frontais, de atropelamentos no acostamento ou sobre a faixa de pedestres; ou mesmo os atropelamentos de ciclistas e de criancinhas amparadas pelas mãos de adultos enquanto caminhavam na calçada, a gente fica mais indignado ainda! E não é para menos.
Sempre que um motorista alcoolizado cruza o caminho de um inocente e põe fim à vida dele e de sua família a dor não diminui, mas o fato de existir um culpado, um portador de todo sofrimento e dor faz a gente ver tudo de uma maneira diferente. Mas, quando é o pastor e a sua família que morre em um acidente de trânsito? Uma pessoa do bem, que só ajudava, que só fazia coisas boas para os outros! Como eles tiveram esse fim de morrer em uma colisão frontal só porque calcularam mal a ultrapassagem, tentaram voltar para a pista e não conseguiram?
Não dá para acreditar quando nos contam, ouvimos e vemos que aquele vizinho educado, boa praça e que a gente cumprimentava todos os dias de manhã se envolveu em um acidente de trânsito com a sua moto, saiu sem um arranhão pelo corpo, mas uma lesão cervical grave causou a sua morte por não ter afivelado a tira do capacete no queixo! Que punição mais cruel do universo! Que exagero na mão mais pesada de Deus!
Nossa! O cara era o melhor motorista que eu já conheci na vida! Tinha anos de habilitação, dirigia por tudo, tudo que tivesse roda! Tudo bem que ele pisava um pouquinho forte no acelerador, mas ele podia, oras! Era o único defeito dele, mas dá para perdoar porque era um motorista que tinha cancha, tinha braço e sabia se safar de acidentes!
Dentre tantos exemplos para além desses existe uma coisa em comum: eram pessoas boas, de bem, educadas, honestas, que só ajudavam as pessoas; maridos, esposas, filhos, filhas, irmãos, irmãs, amigos e vizinhos amados, generosos e de tantas outras qualidades. Mas, o trânsito enquanto fenômeno social é um senhor muito exigente e o mais imparcial de todos.
O trânsito não admite erros, distrações, minutos de bobeira. Para os acidentes de trânsito não há credencial de boa ou de má pessoa. Não tem sexo, não tem idade, não tem classe social, não interessa se a pessoa é sadia ou doente, se acabou de nascer ou se é o idoso mais velho do mundo.
O trânsito tem regras, tem disciplina, tem exigências que vão muito para além daquele Código com mais de 300 artigos e mais de 400 infrações que muita gente tem vontade de rasgar e arrancar fora a parte das infrações e penalidades. O trânsito é o mais imparcial dos senhores: não importa quem você seja ou com quem esteja, se você errar, se você vacilar, se você bobear, se você desrespeitar a regra sagrada de cuidar da sua vida e da vida dos outros em via pública, você paga com o seu corpo e com a sua vida.
O trânsito não julga quem é bom ou quem é mau porque nesse espaço democrático perfeito transitam, circulam, caminham e pedalam todos, sem distinção. No trânsito tem bandido perigoso, tem assassino, tem ovelhinhas, tem lobos, tem senhorinhas simpáticas, tem acidentados claudicantes que escaparam de outros acidentes. No trânsito tem rico e tem pobre, tem gente fina e tem gente besta. Tem o humilde e o orgulhoso. Tem o cidadão exemplar e o corrupto. Tem o doutor e tem o analfabeto. O trânsito é a rede social mais antiga que existe e cada um que nele transita, segura e é capaz de cortar o fio da teia que sustenta a vida. Muitas vezes, cortam o próprio fio que sustenta as suas próprias vidas e as de suas famílias.
O trânsito não mata: as pessoas se matam no trânsito constituindo um dos piores genocídios que a humanidade já viu numa crescente que uma década de ações não consegue apagar e nem evitar que continue.
O trânsito é um fenômeno social tão previsível que faz as pessoas naturalizarem os acidentes, as ocorrências, mas, que uma hora ou outra estampa o cenário da nossa própria dor. Hoje socorremos, amanhã somos vítimas. Hoje passamos batidos diante da dor alheia, amanhã a provamos e sentimos na pele.
Enquanto as pessoas, a humanidade, os governantes, os gestores e cada cidadão não compreender que gente boa também morre, mata e se mata no trânsito, não compreenderão a luta diária daqueles que se esfalfam tentando alertar para o perigo. Preventivamente, estamos o tempo todo querendo dizer, alertar, mostrar e sensibilizar para aquilo que se repete todos os dias e as pessoas parecem que não aprendem: o acidente pode ser a infração que não deu certo e o mínimo erro, a imprudência, a negligência, a imperícia, o vacilo, o minuto de bobeira podem custar a sua vida, a dos outros e a vida de sua própria família.
Independente de ser ou não uma boa pessoa. Porque gente boa também morre, mata e se mata no trânsito. Não é uma questão de credencial ou de antecedentes. Mas, de condutas preventivas.
Fonte: Portal do Trânsito
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