Artigo 29, inciso VII da Lei Federal n. 9.503/97: prioridade absoluta ou relativa?
Antes de adentrarmos mais profundamente no que concerne a discussão principal faz-se relevante um breve introito para melhor compreensão do tema em tela. Então, vejamos:
1. Do Direito Fundamental de Segunda Dimensão
Com o advento da Emenda Constitucional nº 82, de 16 de julho, promulgada pelo Congresso Nacional por meio do Poder Constituinte Derivado Reformador incluiu a segurança viária e a categoria dos agentes da autoridade de trânsito ao rol de natureza taxativa elencado no artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil, in verbis:
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
[…] § 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas:
I – compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e
II – compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei.”
O legislador constituinte previu a teoria basilar do Direito de Trânsito, denominado como “trinômio do trânsito: educação (outrossim, esculpido no inciso XII, artigo 23 da CRFB/88), engenharia e fiscalização.”
A inobservância de um de seus elementos implica na ineficiência do trânsito em condições seguras, o que constitui dever-direito (princípio da universalidade do direito ao trânsito seguro) de todos e dever dos órgãos conforme prescreve o legislador pátrio no artigo 1º, § 2º da lei federal nº 9503/97, o Código de Trânsito Brasileiro.
Cabe salientar, que ainda há muita resistência no tratamento da matéria trânsito como ciência jurídica, ramo do direito público (tutela do interesse coletivo), autônomo (artigo 22, inciso XI da nossa Carta Política – competência legislativa privativa da União), o Direito de Trânsito embora marginalizado, percebe-se que é a área do direito mais vivenciada, conjunto de deveres individuais (direito coletivo composto por deveres individuais) que se observados resultam no trânsito em condições seguras. Direito social prenunciado no artigo 6º da CRFB/88, o direito a segurança, caracteriza-se como conteúdo da ordem social, nos termos do artigo 144, caput da nossa Carta Maior.
2. Dos Veículos Sujeitos as Regras do Código de Trânsito Brasileiro (artigo 3º do CTB)
Todos os veículos/condutores e/ou proprietários (artigo 96, Código de Trânsito Brasileiro), sejam eles brasileiros ou estrangeiros, que circulem pelo território nacional estão sujeitas as normas, de natureza cogente (normas de ordem pública, editadas com o escopo de tutelar os interesses da sociedade).
Nesse contexto, a redação do artigo 3º do Código de Trânsito traz o tratamento isonômico/igualitário a todos usuários da via dentro do território nacional, submetendo todos às regras previstas na legislação de trânsito sem exceções. E, advirta-se, todavia, que o mero desconhecimento da norma legal não exime o responsável do seu dever de cumprimento – Artigo 3º do Decreto-lei 4.657/42, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
3. Das Obrigações
“Art. 26. Os usuários das vias terrestres devem:
I – abster-se de todo ato que possa constituir perigo ou obstáculo para o trânsito de veículos, de pessoas ou de animais, ou ainda causar danos a propriedades públicas ou privadas; […]”
O dispositivo aludido (regra geral de conduta) confere aos usuários (todas as pessoas, tais como motoristas, pedestres etc.) das vias (superfície por onde transitam, veículos, pessoas e animais, compreendendo a pista, a calçada, o acostamento, ilha e canteiro central – anexo I, CTB) uma obrigação (imposição de caráter cogente) de se abster (de não fazer) de qualquer ato que constitua perigo – e ponham em prática o ordenado pela lei.
4. Dos Veículos de Emergência
Os veículos de emergência estão elencados no caput do artigo 29, VII da Lei de Trânsito e na Resolução 268/2008 em seu artigo 1º, §3º do Conselho Nacional de Trânsito, são eles: os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento (corpo de bombeiros), os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito, as ambulâncias (pertencentes a administração pública ou à iniciativa privada) e os veículos destinados a socorro de salvamento difuso em serviço de urgência relativo a acidentes ambientais (defesa civil).
Sob a égide da Lei de Trânsito foram conferidas prerrogativas aos veículos de emergência quando em prestação de serviço de urgência. O Conselho Nacional de Trânsito por meio da Resolução 268, de 15 de fevereiro de 2008, em seu artigo 1º, §2º conceitua prestação de serviço de urgência como: “deslocamentos realizados pelos veículos de emergência, em circunstâncias que necessitem de brevidade para o atendimento, sem a qual haverá grande prejuízo à incolumidade pública”.
Convém reiterar, existem restrições, sujeições a serem observadas pelo agente da autoridade de trânsito para condução dos veículos de emergência e para o gozo da livre circulação, parada e/ou estacionamento.
3.1 Da habilitação
- Ter o curso especializado para condução dos veículos de emergência;
Resolução 484, de 7 de maio de 2014 alterou o caput do artigo 33 da Res. 168, de 14 de dezembro de 2004 do Conselho Nacional de Trânsito, com a seguinte redação:
“Art. 33. Os cursos especializados serão destinados a condutores habilitados que pretendam conduzir veículo de transporte coletivo de passageiros, de escolares, de produtos perigosos ou de emergência, de transporte de carga indivisível e motocicletas e motonetas destinadas ao transporte remunerado de mercadorias (motofrete) e de passageiros (motofrete) ”
“Art. 145. Para habilitar-se nas categorias D e E ou para conduzir veículo de transporte coletivo de passageiros, de escolares, de emergência ou de produto perigoso, o candidato deverá preencher os seguintes requisitos:
I – ser maior de vinte e um anos;
[…]III – não ter cometido nenhuma infração grave ou gravíssima ou ser reincidente em infrações médias durante os últimos doze meses;
IV – ser aprovado em curso especializado e em curso de treinamento de prática veicular em situação de risco, nos termos da normatização do CONTRAN.
Parágrafo único. A participação em curso especializado previsto no inciso IV independe da observância do disposto no inciso III”.
Ou seja, a redação dada pelo legislador no parágrafo único, incluído pela Lei nº 12.619/2012, passou a permitir a participação dos condutores que tenham cometidos ilícitos administrativos de trânsito de natureza grave ou gravíssima ou reincidentes em infrações de natureza média durantes os últimos doze (12) meses.
3.2 Das Condições para o Gozo da Prerrogativa
- Prestação de Serviço de Urgência;
Res. 268, CONTRAN:
“Art. 1º. […]
§1º A condução dos veículos referidos no caput, somente se dará sob circunstâncias que permitam o uso das prerrogativas de prioridade de trânsito e de livre circulação, estacionamento e parada, quando em efetiva prestação de serviço de urgência que os caracterizem como veículos de emergência, estando neles acionados o sistema de iluminação vermelha intermitente e alarme sonoro.
§2º Entende-se por prestação de serviço de urgência os deslocamentos realizados pelos veículos de emergência, em circunstâncias que necessitem de brevidade para o atendimento, sem a qual haverá grande prejuízo à incolumidade pública. ”
- Uso dos dispositivos de alarme sonoro e de iluminação vermelha intermitente;
“Res. 268, CONTRAN:
Art. 1º Somente os veículos mencionados no inciso VII do art. 29 do Código de Trânsito Brasileiro poderão utilizar luz vermelha intermitente e dispositivo de alarme sonoro. ”
Lei Federal nº 9503, de 23 de setembro de 1997, Código de Trânsito Brasileiro:
Art. 29. […]
c) o uso de dispositivos de alarme sonoro e de iluminação vermelha intermitente só poderá ocorrer quando da efetiva prestação de serviço de urgência”
De acordo com o magistério de Arnaldo Rizzardo (p. 130):
[…] Ressalta-se que somente nos casos de efetiva urgência os dispositivos referidos serão utilizados (alínea c), não se admitindo em outras ocasiões, como as em que a utilização se dá apenas para que o veículo possa trafegar com prevalência sobre os demais, sem a devida necessidade.- Prioridade deverá se dar com a velocidade reduzida com os devidos cuidados de segurança.
“Art.29 [..]
d) a prioridade de passagem na via e no cruzamento deverá se dar com velocidade reduzida e com os devidos cuidados de segurança, obedecidas as demais normas deste Código”
Nesse contexto, observa-se que a finalidade do dispositivo legal ao erigir certas prerrogativas foi assegurar a eficiência (celeridade) na prestação dos serviços de urgência. Não cabendo aos agentes públicos se abster das demais normas emanadas pelo legislador de trânsito (cabe anotar, que, todos os atos praticados pelos agentes públicos estão adstritos as hipóteses legais por força do princípio da legalidade). Esta regra, ora contida na alínea “d” do artigo 29 da Lei de Trânsito é clara ao aduzir que serão obedecidas todas as demais regras do Código de Trânsito Brasileiro. Portanto, mister consignar, neste diapasão, que estamos diante de uma prerrogativa de natureza relativa e não absoluta.
Nesta senda, pode-se afirmar que o agente da autoridade de trânsito e/ou a autoridade de trânsito que descumprir as normas, agir de forma desidiosa e vier a causar um “evento culposo de trânsito” (acidente de trânsito na direção do veículo de emergência), o Estado responderá objetivamente – artigo 37, §6º da CRFB/88.
Nesse sentido, a jurisprudência: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS – ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO – COLISÃO DE VIATURA POLICIAL EM SERVIÇO COM VEÍCULO PARTICULAR – ART. 29, VII, CTB – PRIORIDADE DE PASSAGEM – PRERROGATIVA NÃO ABSOLUTA – DEVER DE CUIDADO INOBSERVADO – PREJUÍZOS COMPROVADOS – DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO – ART. 37, § 6º, CR/88 – RECURSO DESPROVIDO.
1) A prioridade de passagem consagrada no art. 29, VII, do CTB não é absoluta, devendo o agente público adotar medidas para se precaver de que o uso de tal prerrogativa não ponha em risco a segurança de pedestres e daqueles que trafegam na via, tais como a utilização de alarme sonoro, giroflex, redução da velocidade etc.
2) Demonstrado que o acidente automobilístico envolvendo viatura policial em serviço de urgência e motocicleta particular foi causado pelo desrespeito do agente público ao dever de cuidado consagrado no art. 29, VII, do CTB, deve o Estado de Minas Gerais responder pelos danos materiais daí advindos, nos termos do art. 37, § 6º, da CR/88.
3) Recurso desprovido. (Apelação Cível 1.0024.11.184445-2/001, Relator (a): Des. (a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto , 8ª CÂMARACÍVEL, julgamento em 03/10/2013, publicação da sumula em 14/10/2013)
RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS – COLISÃO DA AMBULÂNCIA CONDUZIDA PELO RÉU COM UM VEÍCULO PARTICULAR – ACERVO PROBATÓRIO DEMONSTRANDO A CULPA DO REQUERIDO PELO ACIDENTE DE TRÂNSITO – INOBSERVÂNCIA DAS CAUTELAS MÍNIMAS EXIGIDAS – ADEMAIS, EVENTUAL SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA NÃO ELIDIRIA A RESPONSABILIDADE DO REQUERIDO PELOS PREJUÍZOS CAUSADOS À AUTORA – INCABÍVEL A ALEGAÇÃO DE PRIORIDADE ABSOLUTA DE PASSAGEM DOS VEÍCULOS OFICIAIS – AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE – SENTENÇA REFORMADA – RECURSO PROVIDO.
“[…]. Outro não é o entendimento da doutrina a respeito do assunto, a saber:
“Nesse sentido a orientação de Wladimir Valler ao dizer que ‘o direito de passagem franqueado aos veículos oficiais, por força do uso de sirenas e de luz vermelha intermitente, não é absoluto ainda que se dê especial relevo às necessidades de ordem pública, é indiscutível que o uso das faculdades concedidas aos motoristas de carros oficiais, muitas vezes ligadas ao cumprimento de um dever, não pode alcançar as linhas do abuso, criando situações de perigo. O privilégio de trânsito assegurado aos referidos veículos, especialmente às ambulâncias, que prestam serviço de socorro ou assistência, não implica na possibilidade da inobservância por parte de seus condutores, das regras e sinais de tráfego, de tal forma que o uso da sirene não exonera o motorista da ambulância de qualquer responsabilidade a que der causa, não se lhe permitindo, ainda quando conduzindo doentes, desenvolver velocidade inadequada, ou invadir cruzamentos, com sinal vermelho ou amarelo, quando em sentido contrário outros veículos já iniciaram a travessia, mesmo porque a livre circulação que lhes é concedida não significa liberdade de transformar as ruas em pista de corrida, em total desrespeito à vida dos transeuntes’ (op cit, p. 739)” (Rui Stoco – Tratado de Responsabilidade Civil – 6 edição – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004 – p. 1.558/1.559).
Sendo assim, como o réu não adotou as cautelas mínimas exigidas de todo motorista, inclusive de veículo oficial, resta evidente a sua responsabilidade pelo acidente em questão, não havendo se falar em prioridade absoluta de passagem da ambulância”.
(TJ-SP – SR: 6465515300 SP, Relator: Leme de Campos, Data de Julgamento: 15/09/2008, 6ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 25/09/2008)
4. Conclusão
Com o exposto acima, pode-se constatar, que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 erigiu o Trânsito em Condições Seguras como Direito Fundamental de Segunda Dimensão, portanto, dever do Estado (obrigação positiva) e responsabilidade (dever-direito) de todos. Cabe anotar, que, trata-se de proteção a dignidade da pessoa humana, assegurando uma vida em condições dignas.
Numa segunda análise, contudo, no que tange a Lei de Trânsito, evidencia-se que todos que circulem pelo território nacional estão sujeitos ao disposto no Código de Trânsito Brasileiro. É dever de todos os usuários da via abster-se de atos que possam constituir perigo, e por último, as demais regras para condução dos veículos de emergência e os elementos constitutivos a serem observados para o gozo da prerrogativa da livre circulação, estacionamento e/ou parada.
Por fim, nesse panorama, percebe-se, assim, a necessidade da observância das normas de ordem pública emanadas pelo legislador na Lei Federal n. 9503, de 23 de setembro de 1997, o Código de Trânsito Brasileiro. Todavia, é mister ressaltar, que, todos os atos praticados pelos agentes da autoridade e/ou autoridade de trânsito (artigo 280, §4º da Lei de Trânsito – CTB) estão adstritas as hipóteses legais.
Referências bibliográficas:
HONORATO, Cássio Mattos. O trânsito em condições seguras. 1ª ed. Millenium editora. 2009.
RIZZARDO, Arnaldo. Comentário ao código de trânsito brasileiro. 3ª ed. Revista dos Tribunais. 2001.
DA SILVA, Fabio G. Sobreira. 1º ed. Clube dos autores. 2015 Por: Daniel Menezes, acadêmico de Direito.
* Daniel Menezes é Acadêmico de Direito.
Fonte: Portal do Trânsito
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